terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sermão da Montanha (II)

(a partir de Mateus)

A missão dos discípulos 5.13-16

(Mc. 9.49-50; 4.21; Lc. 14. 34-35; 8.16)

5.13-16 – Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus.

Há uma relativa mudança de foco, enquanto nas bem-aventuranças há uma ênfase sobre as exigências para os súditos do reino em relação a Deus, aos homens e a sua condição neste mundo; aqui, se apresenta a responsabilidade dos discípulos diante do mundo através das boas obras.

Mateus é o único que insere essa exortação no sermão da montanha, apesar de estranha ao tema, ele faz uma re-leitura para acentuar as boas obras.

Tanto em Marcos quanto na fonte Q, o valor proverbial do sal é a prudência e a sua ausência é a estupidez (Barbaglio, 2002), assim também quem acende uma lamparina e põe debaixo do móvel evidencia uma estupidez. É provável que fosse esse o sentido primário dessas palavras.

Ao introduzir a figura da cidade edificada sobre a montanha, Mateus aponta para a dificuldade de se esconder a Palavra de Deus nos corações sem que esta se mostre àqueles ao redor através das boas obras. A cidade sobre o monte como fonte da Palavra de Deus pode ser vista em Is. 2.2-3 e 60.1-3.

A imagem da luz como sendo o Senhor Jesus aparece em Is. 42.6 e 49.6. Isto é ratificado por João no quarto evangelho, onde Jesus é apresentado como luz do mundo (Jo.8.12; 9.5).

As boas obras apontadas por Mateus não se referem às práticas religiosas ou ascéticas[1], mas às ações concretas que se refletem no próximo, principalmente nos inimigos (5.44-45).

Esta palavra de Mateus nos mostra uma comunidade cansada e inativa, que precisava ser sacudida com “ameaça” de juízo e racionalização: “se o sal tornar-se insípido... pisado pelos homens” ou “não se acende uma lâmpada para se colocar embaixo do móvel...”.

A nova interpretação da lei 5. 17-48

(Lc. 6. 27-30, 32-36; 16.17)

Não podemos ignorar que Paulo também fará uma nova interpretação da lei (Rm.3.31; 7), mas isso ficará para mais adiante.

A mensagem principal dessa seção é “Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste” (v.48).

A função da lei 5. 17-20

5.17-20 – Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til[2] jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça[3] não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.

Após as exortações das bem-aventuranças e o apontamento da missão dos discípulos em relação às boas obras, Mateus chega ao ponto central do discurso, a nova interpretação da lei. Sua comunidade de judeu-cristãos tinha uma forte ligação com a lei e fica evidente o debate entre anular a lei ou segui-la nos pormenores. Além do mais, existia uma forte oposição dos rabinos da sinagoga e dos fariseus sobre a observância literal da lei contra a posição mais liberal dos judeus helenistas, que enfatizavam o “espírito” da lei. Essa controvérsia provavelmente foi trazida para a comunidade cristã. Por isso, era preciso esclarecer até que ponto a lei de Moisés deveria ainda reger as vidas dos cristãos, visto ser ela a revelação de Deus no Sinai.

Para Mateus, a lei não foi anulada e sim reinterpretada de forma definitiva pelo Senhor. Nele, ela foi plenamente cumprida (3.15; 9.13; 12.12). Assim, Mateus tenta conciliar a continuidade e a ruptura, enfatizando que a prática da lei deve exceder à dos mestres e fariseus e que por outro lado sua prática não abre a porta para o reino dos céus (19. 16-21).

Da fonte Q provém o v.18, da qual também Lucas compartilha (Lc. 16.17).

Não matarás 5. 21-26

(Lc. 12. 58-59)

5.21-26 - Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo. Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta. Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo.

O sexto mandamento do decálogo, “Não matarás” (Ex. 20.13 e Dt. 5.17), é ampliado para abarcar a fúria, o xingamento e o ódio.

Os três níveis de julgamento eram normalmente indicados para o assassinato, Jesus os utiliza para a ira: tribunal local, Sinédrio e o geena de fogo.

O perdão é um tema recorrente em Mateus (vs.24-25; 18.21-22,35). A expressão “ao trazeres ao altar a tua oferta” indica que os cristãos ainda freqüentavam o Templo e participavam dos ritos (At. 21. 23-26).

Há uma dupla exortação: 1ª - o temor ao tribunal humano: matar, irar e insultar; 2ª - o temor ao tribunal divino: as ações já mencionadas mais o xingamento. Assim como o acordo evitaria o tribunal humano, assim também o divino poderia ser evitado com a reconciliação.

Lucas apresenta os vs. 25 e 26 (Lc. 12. 35-59) num sentido escatológico, exortando os cristãos a uma urgente reconciliação.

Não adulterarás 5. 27-32

(18. 8-9; 19. 3-9; Mc. 9. 43-48; 10. 2-12; Lc. 16. 18)

5.27-32 - Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela. Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não vá todo o teu corpo para o inferno. Também foi dito: Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio. Eu, porém, vos digo: qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério.

No decálogo, proibia-se o adultério (Ex. 20.14; Dt. 5.18), mas também o desejo de possuir a mulher do próximo (Ex. 20.17; Dt. 5.21). Jesus os coloca no mesmo nível. Num contexto cultural em que a mulher sempre era vista com acepção e sempre punida pelo adultério, Jesus apresenta um mandamento exclusivamente masculino.

Tanto Mateus quanto Marcos utilizaram os vs. 29 e 30 num outro contexto, em que aplicaram aos crentes que fizessem tropeçar um novo convertido ou um irmão fraco na fé (18. 8-9; Mc. 9. 43-48).

Um acento sapiencial é marcado nos vs. 29 e 30: “vale a pena sacrificar um bem precioso, mas parcial, para preservar o bem total”. (Barbaglio, 2002). O objetivo final é a salvação.

O divórcio foi regulamentado pela lei (Dt. 24. 1-4); visto que a lei era bastante “frouxa” em relação ao divórcio, o abuso era evidente. Por isso, Mateus estabelece um único critério para o divórcio (5.32; 19.9); Marcos e Lucas ignoram esse critério (Mc. 10.11-12; Lc. 16.18), Paulo também (1Co. 7.10-11).

Não jurarás falso 5. 33-37

5.33-37 - Também ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos. Eu, porém, vos digo: de modo algum jureis; nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do grande Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno.

A proibição contra o falso juramento ou voto na lei encontra-se em Lv. 19.12; Nm. 30.2 e Dt. 23.21. O primeiro pode estar sendo referido ao relacionamento social, mas os outros dois apontam claramente para as relações entre o homem e Deus. Além do decálogo que proíbe a pronuncia do nome de Deus em vão (Ex. 20.7; Dt. 5.34).

Nenhum ser humano tem o controle sobre o céu, a terra, Jerusalém ou até mesmo sobre si para oferecer como garantia. Jesus ensina seus discípulos o falar sincero e franco.

O uso de juramentos era evidentemente uma prática bastante comum e já desacreditada.

“Olho por olho, dente por dente” 5. 38-42

(Lc. 6. 29-30)

5.38-42 - Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes.

A lei veterotestamentária do Talião (Ex. 21. 23-25; Lv. 24. 19-20; Dt. 19.21) é também estendida até a anulação. O propósito dessa lei era manter um equilíbrio entre o dano e a punição, refreando a vingança e impedindo a violência.

O Senhor Jesus ensina seus discípulos a abrirem mão da retaliação permitida pela lei. Ele apresenta quatro exemplos de comportamentos aceitos socialmente e instintivos na resistência ao perverso: “bateu-levou”; “o que é meu ninguém leva”; “só vou onde quero” e “emprestar, nem pensar”. Os quais devem ser feitos o oposto.

Amarás ao próximo 5. 43-48

(Lc. 6. 27-28,32-36)

5.43-48 - Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.

Este ensino resulta de algumas suposições feitas pelos judeus na interpretação da lei: 1ª o meu próximo é meu compatriota; 2ª o meu inimigo não é o meu próximo, logo não preciso amá-lo. A discussão sobre quem é o próximo fica evidente na pergunta do interprete da lei a Jesus (Lc. 10.29).

Jesus ensina o amor a todos, não somente aos membros do grupo nacional e familiar, mas até mesmo aos inimigos. Os inimigos são também os perseguidores. Mateus já prepara sua comunidade para evangelização das nações.

As exigências do amor buscam referência em Deus, em seu exemplo (v.45). O filho deve ser semelhante ao pai.

A expressão “Sede vós perfeitos” tem valor cultual, pois faz referência ao sacrifício oferecido no VT (Rm. 12.1).



[1] Devoto, místico; contemplativo.

[2] Sinal gráfico.

[3] A prática da lei.

sexta-feira, 18 de março de 2011

O Sermão da Montanha (I)

(a partir de Mateus)

Mateus estabeleceu uma estrutura diferente de Lucas. Este apresenta quatro bem-aventuranças (Mt. oito), quatro “ais” (Mt. os põe em número de sete no c.23.13-29), Lucas fala apenas da vingança, do amor ao próximo, do juízo temerário e apresenta três parábolas: cego que guia outro, a árvore e seus frutos (Mt. põe no c.12.33-37) e os dois fundamentos.
A única fonte extraída de Marcos para o sermão da montanha de Mateus foi o 5.13 (Mc. 9.49-50 que faz uma alusão a Lv. 2.13; Ez. 43.24).

A estrutura se apresenta da seguinte forma:

•Introdução: 5.1-2;
•As bem-aventuranças: 5. 3-12;
•A missão dos discípulos: 5. 13-16;
•A nova interpretação da Lei: 5. 17-48;
•O verdadeiro valor do comportamento religioso: 6. 1-18;
•O viver sereno e confiante: 6. 19-34;
•Três exortações e uma máxima (v.12): 7. 1-12;
•A prática da palavra de Cristo: 7. 13-27;
•A reação da multidão: 7. 28-29.

Introdução: 5.1-2 (Lc. 6.20)
A visão panorâmica: dois círculos de ouvintes, a multidão atrás e os discípulos próximos; o monte donde desce a palavra; a atitude de Jesus e a qualificação da palavra de Jesus como ensinamento.

5.1 - Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos;

As multidões no segundo plano são os ouvintes que ficarão maravilhados, elas constituem os potenciais discípulos, as quais a igreja deve levar os ensinamentos de Cristo (28.19-20).
O monte não tem um valor topográfico. Significa o lugar da revelação divina. Outrora, para os israelitas, em Moisés, fora o Sinai (n.r.:BARBAGLIO, FABRIS e MAGGIONI. Os Evangelhos (I). Edições Loyola. São Paulo, 2ª ed. 2002. p. 109); para Ló, o lugar de refúgio (Gn. 19.17); para Abraão, o lugar da provação (Gn. 22.2); foi num monte que foi construído o templo (2Cr. 3.1). Lucas situa este sermão na planície (Lc. 6.17). Jesus fala sentado, esta é a posição do mestre e a sua palavra possui um tom de autoridade.

5.2 - e ele passou a ensiná-los, dizendo:

Mateus qualifica a fala de Jesus como ensinamento para indicar a interpretação da palavra normativa de Deus contida no AT. Cristo é seu intérprete autorizado.

As bem-aventuranças 5. 3-12 (Lc. 6. 20-23)
O texto é artístico, composto por duas estrofes, cada uma com quatro bem-aventuranças (3-6, 7-10). A promessa do Reino aparece no início da primeira estrofe e no fim da segunda. “Justiça” significa o cumprimento da vontade de Deus. A nona bem-aventurança (vs.11-12) se liga a oitava no que se refere aos “perseguidos”; contudo, ela se apresenta à parte como desenvolvimento da oitava. Há também uma alteração em Mateus em relação a Lucas, Mateus usa a terceira pessoa para dar um tom universal (com exceção da nona bem-aventurança), enquanto Lucas as apresenta em segunda pessoa.
Outra diferença importante: em Lucas as bem-aventuranças são mais objetivas: pobreza, fome, lágrimas e perseguições, falando às necessidades imediatas dos ouvintes; enquanto Mateus as espiritualizou, enfatizando os aspectos morais dos ouvintes. Em Mateus, Jesus felicita aqueles que querem ter um relacionamento com Deus e com o próximo. Veja o esquema Mateus / Lucas:

• Pobre de espírito / pobre;
• Choram - consolados / choram - riem;
• Fome e sede de justiça / fome;
• Perseguidos por causa da justiça / perseguidos;
• Manso – terra futura;
• Misericórdia – misericórdia futura;
• Limpos de coração;
• Pacificadores – futuros filhos de Deus.

O gênero literário das bem-aventuranças não é novo, também se pode encontrá-lo no AT, p. ex. Sl.1.1-2 felicita os fiéis seguidores da lei de Deus. Em Mateus, as bem-aventuranças têm um cunho escatológico como em Dn. 12.12.
As Bem-Aventuranças, entre os versos 3 e 10, tem uma estrutura com três acentos, ligados pelos verbos.

Primeiro Acento: a Felicidade;
Segundo Acento: as Exigências;
Terceiro Acento: a Promessa.

V.3 - Bem-Aventurados / os pobres de espírito / deles é o Reino dos Céus.
V.4 - Bem-Aventurados / os que choram / serão consolados.
V.5 - Bem-Aventurados / os mansos / herdarão a terra.
V.6 - Bem-Aventurados / os que têm fome e sede de justiça / serão fartos.
V.7 - Bem-Aventurados / os misericordiosos / alcançarão misericórdia.
V.8 - Bem-Aventurados / os limpos de coração / verão a Deus.
V.9 - Bem-Aventurados / os pacificadores / serão chamados filhos de Deus.
V.10 - Bem-Aventurados / os que sofrem perseguição por causa da justiça / deles é o Reino dos Céus.

Em cada acento ou destaque, há uma área importante, que define a personalidade do discípulo de Jesus.

Observação: há a ligação entre os versos pelos verbos: 3-10 (presente) / 4-9 (futuro passivo) / 5-8 (futuro ativo) / 6-7 (futuro passivo). O nome disto é “ESTRUTURA QUIÁSTICA” . (Fonte: Kibuuka, Brian. O tríplice ministério de Jesus. Apostila).

V.3 - “A primeira bem-aventurança é para os humildes, isto é, para aqueles que se apresentam com as mãos vazias diante de Deus” (Barbaglio, 2002, p.113). A palavra grega (ptochós) expressa uma pobreza absoluta, usada para aquele que dependia totalmente do favor alheio. É evidente a espiritualização de Mateus em relação a Lucas 6.20.

V.4 - A segunda bem-aventurança fala àqueles que estão em aflição, a promessa é o consolo. Provavelmente Mateus tinha em mente Is. 61.1-2, diferentemente de Lucas que fala do riso, numa perspectiva menos espiritual e mais objetiva (6.21b).

V.5 - Uma vez que Mateus traz em seu evangelho um número significativo de passagens do VT, há uma grande probabilidade dele estar citando o Sl. 37.11. Não há dúvida que esta bem-aventurança se refere às relações humanas, do qual Cristo é nosso modelo (11.29). Também podemos considerar Zc. 9.9 citado em 21.5. Em princípio, a terra se refere à terra de Canaã concedida pelo Senhor a Israel, já em Is. 66.22 fala-se num sentido escatológico para indicar os novos céus e a nova terra.

V.6 - A quarta bem-aventurança também se pode observar a espiritualização de Mateus em relação a Lucas 6.21a. O faminto de Mateus é aquele que anseia realizar a vontade de Deus, que não se conforma com a injustiça ao seu redor. A promessa futura é a plena satisfação.

V.7 - A misericórdia em Mateus é operosa e concreta e não um mero sentimento de compaixão. Para Mateus a misericórdia tem mãos, ela realiza (18.33; 25.35-37); também traz a idéia de perdão e recomeço (6.12,14-15).

V.8 - A linguagem da sexta bem-aventurança traz aspectos relacionados ao culto. Para o israelita se aproximar do templo e prestar seu culto era necessário que fizesse as purificações rituais; contudo, logo se observará que somente isso não era suficiente. A pureza necessária é muito mais moral do que ritual (Barbaglio, 2002), assim, Mateus alude ao Sl. 24.3-4 em que apenas os limpos de coração verão a Deus.

V.9 - Outro salmo oferece o motivo da sétima bem-aventurança: “Procura a paz e segue os seus passos” (34.14). Considerando que Mateus dirige seu evangelho a uma comunidade cristã, a referência à paz se aplica imediatamente às relações entre os irmãos e posteriormente às relações entre todos. Aqueles que se esforçam para promover a paz são parecidos com Deus.

Vs.10-12 - A oitava bem-aventurança traz a promessa da primeira (o reino dos céus) para aqueles que obedecem à vontade de Deus (justiça) e por conseqüência disso, são perseguidos.
A perseguição era bastante forte nos primeiros dias da igreja, por isso esta bem-aventurança recebe um desenvolvimento mais detalhado. No desenvolvimento, Mateus mudará o tratamento universal expresso em terceira pessoa para segunda pessoa num tratamento mais direcionado à comunidade. Mateus precisava lembrá-los que os sofrimentos decorrentes da fé em Jesus trariam uma recompensa nos céus e que tais sofrimentos deveriam levá-los ao regozijo por saber que Deus preparou algo superior. Mateus procura lembrá-los da história dos profetas, os quais também foram perseguidos e muitos foram mortos por sua fidelidade ao Senhor. É provável que Mateus tenha desenvolvido essa última bem-aventurança a partir das palavras de Jesus registradas por ele mesmo em 10.16-39. Também se pode considerar, a partir de outros textos, que a bem-aventurança para os perseguidos por causa de Cristo fazia parte de um ensino bastante difundido na igreja primitiva (1Pe. 4.13-16), cujo objetivo era trazer conforto e esperança.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A Parábola da Lamparina

“Ninguém esconde uma lamparina num móvel, depois de tê-la acendido ou a põe debaixo da cama, mas a põe sobre o candelabro, para que os que entram vejam a luz”. Lucas 8: 16. (Tradução do autor).


A parábola da lamparina tem o mesmo propósito da parábola do semeador, visto que Lucas, seguindo Marcos, as coloca lado a lado, dentro de uma mesma temática. Jesus havia tido um encontro com uma mulher na casa de um Simão fariseu. Nesse encontro, Jesus mostrou aos presentes que a Palavra de Deus deve ser anunciada a todas as pessoas indiscriminadamente, isto é, até para uma mulher com fama de pecadora. Com o episódio, pode-se aprender que das pessoas mais improváveis, Jesus pode receber um louvor inigualável.
Simão, o anfitrião, deveria ter honrado seu hóspede segundo a etiqueta da época, isto significaria tê-lo recebido com uma saudação calorosa (beijos), água para a lavagem dos pés e das mãos (rito religioso de purificação, chamado pelos judeus de batismo, Marcos 7:4) e perfume para unção (não se refere a rito religioso). No entanto, nada disso foi feito, mas repentinamente (dificilmente uma surpresa para Simão), uma mulher de má fama entra na casa e sem ser impedida, aproxima-se de Jesus e o toca, chorando e beijando seus pés, passa-lhe perfume. Jesus passivamente assiste toda a cena, provavelmente sabia do “plano”, e então conta uma pequena parábola e em seguida pergunta a Simão: quem ama mais? Quem teve uma dívida pequena perdoada ou aquele que teve uma dívida grande perdoada? Simão responde que quem amará mais é aquele que teve a maior dívida perdoada (7: 41-43). Jesus ainda falando a Simão a respeito da mulher, diz: perdoados lhe são os seus muitos pecados, porque ela muito amou.
Em seguida Lucas seleciona duas parábolas que procuram mostrar a importância de se anunciar a Palavra de Deus a todas as pessoas sem procurar avaliar quem seria digno ou não de ouvi-la. O semeador que lança a semente indiscriminadamente em terras que não são suas e a lamparina que deve estar em lugar visível para que possa iluminar a todos que se aproximam.
Assim, pode-se concluir que as parábolas do semeador e da lamparina são ilustrações inseridas num discurso em que a temática é a pregação da Palavra de Deus a todas as pessoas. Esse discurso é apresentado no episódio em que Jesus visita Simão, o fariseu, e a seguir são apresentadas duas ilustrações para facilitar a compreensão do ouvinte. Essas parábolas não constituem o centro do discurso, mas são periféricas.
Lucas termina essa seção utilizando palavras de advertência de Jesus a respeito de que nada ficará oculto para sempre, os pecados serão manifestos tanto daqueles que julgam não tê-los (Simão) quanto daqueles que notoriamente os admitem (mulher pecadora). E que precisamos ter cuidado com a forma com que ouvimos a Palavra de Deus, pois aquele que tem verdadeiramente aprendido e praticado, crescerá, mas aquele que acha que sabe (não-praticando), na realidade nada sabe e o pouco que talvez saiba, perderá.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Parábola do Semeador

“O semeador saiu a semear... parte caiu à beira do caminho... parte sobre a pedra... parte no meio dos espinhos... e parte na terra boa...” Lucas 8: 5-8.


A parábola do semeador, como qualquer outra, descreve a experiência cotidiana de seus primeiros ouvintes. É a partir dessa identificação, que se tem a oportunidade de entender o significado, embora, nem sempre, esse primeiro ouvinte conseguia alcançar o sentido que se propunha, necessitando, assim, de uma explicação, na qual a aplicação era feita. Diante disso, pode-se imaginar a dificuldade que terá um leitor moderno de qualquer parábola antiga, que não encontra nenhuma relação com sua experiência cotidiana. No caso da parábola do semeador, o Senhor Jesus nos deu a aplicação, por isso, apesar de não se identificar com a situação apresentada na parábola, pode-se compreendê-la, sem, contudo, entender plenamente a estória.
Uma vez que a parábola sempre tem relação com o cotidiano do seu primeiro ouvinte, é necessário perguntar: por que alguém semearia na beira da estrada, sobre pedras ou entre espinhos até achar uma terra boa, a qual não conhecia de antemão? Nenhum agricultor faria isso, a menos que não tivesse outra opção para sobreviver. Lucas, no seu livro, nos informa, muitas vezes, que os ouvintes do Senhor Jesus eram pobres (4:18;6:20;7:22 etc), então, não tinham terras para plantar, lhes sobrava a faixa de terra entre a estrada e a propriedade privada ou outra imprestável para o plantio. Esse pobre contava com a “misericórdia de Deus” para achar uma terra que fosse boa e produzisse o necessário para si e sua família por um tempo considerável até uma próxima colheita. Isto significa dizer que a sobrevivência desse pobre dependia do agir de Deus sobre uma natureza “morta”.
Certamente, se reconhece que uma parte no processo de plantar e colher não depende do agricultor, mas é necessário um esforço muito maior do que simplesmente lançar a semente ao chão. Precisa-se selecionar a terra boa, arar, adubar, fazer a cova, lançar a semente, retirar o mato indesejado ao longo do processo de crescimento da planta, regar, colher, armazenar etc. O semeador da parábola, mesmo que quisesse, não poderia fazer tudo isso, a sua dependência de Deus era muito maior que qualquer outro agricultor.
Sabe-se, pela explicação da parábola que o Senhor Jesus nos concedeu, que a semente é a Palavra de Deus (8:11), os tipos diferentes de terra são os corações dos homens (8:12) e as dificuldades para a semente produzir nas terras ruins também são explicadas pelo Senhor Jesus, bem como a produção extraordinária na terra boa é explicada pela retenção e perseverança do ouvinte da Palavra. Mas a razão pela qual alguém semearia de qualquer maneira em qualquer lugar, sem trabalhar a terra que não é sua, não é explicada. Contudo, seus primeiros ouvintes sabiam.
Se nós hoje também soubéssemos, entenderíamos que a pregação da Palavra deve ser feita indiscriminadamente (a toda criatura); que o frutificar da Palavra não depende de nossos esforços, só nos cabe semear; que as terras (as pessoas) não são nossas e nunca serão; que mesmo que a terra for boa (não sabemos de antemão), sua produtividade em relação à quantidade de semente é sem igual (milagre); que o cento a partir de uma semente pode mudar a realidade de muitos famintos, não apenas do agricultor...
Que Deus nos ajude a termos “ouvidos para ouvir” (8:8)!